O risco da técnica de remissão das leis penais em branco no Direito Penal da Sociedade do Risco - Núm. 3, Enero 2007 - Política Criminal - Libros y Revistas - VLEX 44091009

O risco da técnica de remissão das leis penais em branco no Direito Penal da Sociedade do Risco

AutorPablo Alflen da Silva
CargoProfessor de Direito Penal e Processual Penal e Coordenador de Pesquisa e Extensão da Universidade Luterana do Brasil de São Jerônimo (ULBRA-SJ). Advogado Criminal. Mestre em Ciências Criminais (PUCRS). Diretor do Grupo de Pesquisa Direito Penal Internacional e Comparado (CNPq/ULBRA-SJ).
Páginas1-21

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Introdução

A* questão das chamadas leis penais em branco desde há muito tem permanecido à margem das investigações e pesquisas desenvolvidas no âmbito do Direito Penal, sendo que mesmo na literatura jurídico-penal do "mundo europeu" poucos tem sido os trabalhos que nas últimas décadas tem voltado os olhos para a mesma.1 Tal questão exsurge à medida em que se parte de um Direito PenalPage 2 que tem a sua própria raiz no pensamento ilustrado, uma vez que este proporcionou o desenvolvimento das garantias ainda hoje asseguradas pelo Direito Penal, onde preceitos como o da secularização, da ultima ratio ou do caráter subsidiário, do princípio da legalidade, orientado pela idéia de certeza e clareza das leis penais, passaram a constituir o alicerce do que se convencionou chamar de Direito Penal clássico; os quais, ainda que com ressalvas, formaram a base do pensamento liberal do jurista alemão Karl Binding, que foi um dos primeiros juristas a desenvolvelos em uma estrutura sistematizada.

Contudo, passado mais de um século após a primeira edição da obra de Binding, intitulada Die Normen und ihre Übertretung,2 na qual o jurista alemão elaborou a designação e delineou os aspectos básicos das chamadas leis penais em branco, percebe-se que a problemática acerca destas, não só subsiste, e de maneira latente, como se acentua ainda mais.3 Naturalmente, à época a hipótese desta técnica legislativa não apresentava maiores problemas, na medida em que a Constituição do Império alemão possibilitava às instâncias de categoria inferior legislar em matéria penal.

No entanto, com os problemas resultantes da inspiração pelos modernos desenvolvimentos sociais, mais precisamente da chamada Sociedade do Risco, exsurge um Direito Penal do Risco4 que, com a debilitação das garantias político-criminais, tem suscitado um panorama propício para o emprego arbitrário e indiscriminado de leis penais em branco. Disso se segue à adesão a um modelo minimalista, assegurador das garantias político-criminais, ou seja, à orientação pela limitação do poder punitivo estatal, reconhecendo os direitos fundamentais como direitos de defesa (Abwehrrechte) contra o Estado. Por conseqüência, isso conduz à oposição a um Direito Penal orientado pelas modernas teorias sociológicas, sendo fundamental estabelecer diretrizes para a admissibilidade das leis penais em branco, em unissonância com os postulados do Estado de Direito.

1. Leis penais em branco
1.1. Conceito: gênese e classificação

Ao desenvolver sua teoria das normas, Binding,5 orientado pelos influxos ideológicos do período (como o racionalismo historicista - que apresentou reflexos diretos na chamada Jurisprudência dos Conceitos - e o positivismo-jurídico), constatou a existência de algumas lex imperfectas, as quaisPage 3 designou Blankettstrafgesetzen (leis penais em branco). Estas apresentavam como características principais, em primeiro lugar, o fato de que o tipo penal era descrito de modo impreciso, e, em segundo lugar, que a matéria de proibição deveria ser preenchida por uma autoridade policial local ou dos Estados ou, ainda, por legislação particular, daí a clássica afirmação de que "esta proibição pode perseguir a promulgação da lei penal, onde então a lei penal temporariamente como um corpo errante, procura sua alma".6 Todavia, é de extrema relevância a constatação de Binding da flexibilidade destas leis, de modo que, de acordo com elas, a matéria de proibição modifica-se facilmente segundo as vicissitudes que sofrem os acontecimentos a que se referem. Tal concepção, naturalmente, estava em completa unissonância com a estrutura constitucional do Império alemão. A Constituição do Império (datada de 16 de abril de 1871) sinalizou a mudança para uma Federação com competência geral e não pela reunião das meras competências dos estados singulares. Esta, como afirma Binding,7 atribuía ao Império alemão a legislação comum sobre Direito Penal, sendo que, em alguns casos, a competência era tanto do Império como dos Estados da Federação (Bundesstaaten). E embora Binding tenha observado o fato de que a designação leis penais em branco na época tenha sido completamente aceita pelo Tribunal do Reich, ressaltou que Heinze já havia constatado a existência desta técnica legislativa, mas as tinha designado "blinde Strafdrohungen" (ameaças penais cegas).8 Entretanto, já à época, Binding identificou vários exemplos de leis penais em branco na própria legislação penal do Império alemão (RStGB), como o § 327 (e § 328) que punia com prisão de até 2 anos (o § 328, até 1 ano), quem conscientemente infringisse as medidas determinadas pela autoridade competente para prevenção da introdução ou propagação de doença contagiosa; o § 360, 2 que punia quem, contrariando a proibição da autoridade, mantivesse armas ou explosivos em estoque, sendo que, como legítima lei penal em branco, cujas normas são fornecidas por Decreto Imperial, cita o § 145, que punia com pena de multa até 1.500 Marcos, quem infringisse as disposições do imperador para prevenção da colisão de embarcações no mar.9

A concepção originária foi levada adiante e ampliada por E. Mezger, o qual inseriu a questão das leis penais em branco no âmbito da teoria tipo,10 sendo que, ao elaborar a distinção entre tipos fechados e tipos que necessitam de complementação, introduziu nestes últimos as leis penais em branco.

Segundo Mezger tipos fechados seriam aqueles que "em si mesmos trazem todos os elementos do respectivo fato punível"11 e tipos penais em branco seriam "aqueles tipos que já na forma exterior (portanto, não apenas pela sua necessidade de complementação valorativa) remetem àPage 4 complementações encontradas desde fora",12 trata-se, portanto, de uma "técnica legislativa". Contudo, o conceito de lei penal em branco sofre uma notável ampliação com Mezger, pois - com a distinção entre leis penais em branco em sentido amplo e em sentido estrito - inclui a idéia de que o complemento da lei penal em branco pode estar contido na mesma lei ou em outra lei que emana da mesma instância legislativa.13

Assim, nas leis penais em branco em sentido amplo o tipo e a sanção encontram-se separados externamente, sendo que a sanção vincula-se apenas a um tipo que necessita ser complementado, podendo distinguir-se duas hipóteses: a) a complementação necessária está contida na mesma lei, o que, conforme Mezger, implica tão só em um problema de pura técnica legislativa; e b) o complemento está contido em outra lei, embora da mesma instância legislativa. Já nas leis penais em branco em sentido estrito a complementação necessária está incluída em uma lei de outra instância legislativa. Em consideração à esta distinção Mezger dá a entender uma maior preocupação com o princípio da legalidade, em particular aos postulados de lex scripta e lex certa, embora considere irrelevante esta forma especial de legislação penal em branco, bem como que, em qualquer hipótese, a sua importância se limita ao âmbito da técnica legislativa externa. Assim, observa que o complemento necessário sempre integra o tipo, de maneira que o tipo já complementado cumpre as mesmas funções que os casos normais.14

1.2. Desenvolvimento e problemática

Verifica-se com clareza que já a partir da primeira metade do século XX o emprego de leis penais em branco nas legislações se tornou cada vez maior. A multiformidade e a complexidade da vida em face dos problemas resultantes para os diversos campos de atividade (como economia, relações de consumo, tributação),15 cuja regulamentação é de difícil determinação, uma vez que depende de conjunturas ocasionais exigindo, inclusive, a adoção de decisões temporárias adequadas a cada uma delas, apresentou reflexos também na legislação com o recurso à instâncias mais ágeis, onde então as leis penais em branco passaram a ser reconhecidas como um "mal necessário".

Como exemplo deste desenvolvimento exasperador veio à tona o próprio Direito Penal econômico,16 pois já a partir da Primeira Guerra Mundial desenvolveram-se novas formas jurídicas pela chamada "economia de guerra", a qual ofereceu o quadro de uma economia inteiramente organizada, extrapolando o âmbito das relações privadas.17 Em razão disso as leis penais em branco passaram a constituir uma solução muito cômoda, particularmente diante das particularidades deste setor, que impuseram o recurso à disposições jurídico-penais mais flexíveis e variáveis, possibilitando a modificação da matéria de proibição mais facilmente. Assim, por exemplo, da legislação penal brasileira pode-se mencionar o art. 2.º, XI da Lei n.º 1.521 de 1951,18 que referePage 5 constituir crime contra a economia popular "fraudar pesos ou medidas padronizadas em lei ou regulamentos, possuí-los ou detê-los, para efeitos de comércio, sabendo estarem fraudados"; bem como o art. 8.º da Lei n.º 7.492 de 1986,19 que pune quem exige, em desacordo com a legislação, juro, comissão ou qualquer tipo de remuneração sobre operação de crédito ou de seguro, administração de fundo mútuo ou fiscal ou de consórcio, serviço de corretagem ou distribuição de títulos ou valores imobiliários. Da mesma forma, por exemplo, pode-se mencionar o § 3 da legislação econômica alemã (WiStG), que remete à disposições jurídicas relativas à preços; bem como o § 34 da AWG, em que a alínea 1 remete à lista de bens, cuja exportação está sujeita à autorização, e encontra-se no anexo à AußenwirtschaftsVO e o § 34 da AWG que só é aplicável se e na...

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