Arruinamento e regeneracao do espaco edificado na metropole do seculo XXI: o caso de Lisboa. - Vol. 43 Núm. 128, Enero 2017 - EURE-Revista Latinoamericana de Estudios Urbanos Regionales - Libros y Revistas - VLEX 661906925

Arruinamento e regeneracao do espaco edificado na metropole do seculo XXI: o caso de Lisboa.

AutorBrito-Henriques, Eduardo
CargoArticulo en portugu

RESUMO | Ruinas e espacos abandonados sao presencas ubiquas nas cidades contemporaneas. Talvez por serem considerados elementos indesejados e anomalos, sao um tema pouco tratado nos estudos urbanos. Neste artigo, trabalha-se em vista a uma teoria da ruina urbana moderna. Tomando por referencia o caso da area metropolitana de Lisboa (Portugal), sustenta-se que os abandonos e arruinamentos sao parte integrante da mutabilidade das formas urbanas imposta pelo progresso e que a aceleracao do tempo na modernidade, ao radicalizar o obsolescimento dos objetos, intensifica esses processos. Abandonos e arruinamentos tendem a ser mais subitos e aleatorios, irrompendo no tecido urbano de forma caotica e fractal, tanto em espacos centrais como nas periferias. Demonstra-se, por fim, que as politicas de regeneracao urbana estao a favorecer o reinvestimento nas areas centrais, embora de forma seletiva, e que se assiste a uma tendencia recente de periferizacao dos arruinamentos.

PALAVRAS-CHAVE | teoria urbana, renovacao urbana, areas metropolitanas.

ABSTRACT | Ruins and derelict spaces are ubiquitous presences in contemporary cities. Probably because they are seen as undesirable and anomalous elements, scarce attention has been paid to them in urban studies. A theory of modern urban ruin is attempted in this paper. Using the Lisboan metropolitan area (Portugal) as case study, it is argued that dereliction and ruinification are part of the mutability of urban forms imposed by progress. The acceleration of time in modernity, by making the obsolescence of objects easier and faster, intensifies those processes. Dereliction and ruinification tend to occur more suddenly and randomly, breaking into the urban space in a chaotic andfractal geography, which reaches both central and peripheral areas. Finally, it is demonstrated that urban regeneration policies are favoring reinvestment in central areas, albeit selectively, and that a trend of ruins shifting to periphery is under way.

KEYWORDS | urban theory, urban renewal, metropolitan areas.

Introducao (1)

A ruina e uma presenca incontornavel na cultura visual da modernidade. Entre as gravuras de Piranesi e filmes de ficcao cientifica como Blade Runner e Mad Max ha uma linha de continuidade construida sobre a repeticao de imagens de destruicao e de escombros. Moscovo em cinzas no incendio de 1812 (Tolstoy em Guerra e Paz), fotos e filmes das cidades bombardeadas na II Guerra Mundial, a desolacao nuclear de Chernobyl, o colapso das Torres Gemeas no 11 de setembro, e as varias formas de paisagem que revestem os fracassos economicos do nosso tempo--das paisagens da desindustrializacao as cidades fantasmas das bolhas especulativas--fazem parte de um imenso arquivo iconografico mental de arruinamentos que transportamos connosco. De Spengler (1926 [1923]) a Virilio (1977) e a Berman (1982), sao muitos os autores que denotam que tao estruturais no pensamento moderno quanto os conceitos de progresso e desenvolvimento sao as ideias de decadencia e calamidade.

A presenca da ruina--sobretudo da ruina moderna--tornou-se mais sensivel nos ultimos anos. Na arte, o ruin porn emergiu como um novo genero fotografico (vd. Mullins, 2012). Fotografias que exibem com espetacularidade o descalabro de cidades como Detroit fazem sucesso nas galerias de arte, explorando um prazer voyeurista que se compraz/condoi com o obsceno dos grandes edificios publicos e moradias particulares em ruinas. Nas ciencias sociais e humanidades assiste-se a um interesse inedito pela ruina moderna e pela sua fenomenologia, a ponto de se falar da emergencia de uma "ruinologia" (Martin, 2014a): refazem-se biografias de edificios em ruinas, escava-se a sua arqueologia, discutem-se os seus sentidos politicos, inquire-se a experiencia sensual e a emocao no confronto com a ruina (Abourahme, 2014; Dobraszczyk, 2015; Gandy, 2013; Gonzalez-Ruibal, 2008; Martin, 2014b; Millington, 2013; Ren, 2014). Nos estudos urbanos, porem, esta reflexao ainda e incomum. Com excecao de raros trabalhos dedicados a refletir sobre as potencialidades urbanisticas de vazios urbanos e espacos abandonados (Sola-Morales, 1995; Berger, 2006), a ruina permanece um assunto tabu que so indiretamente e abordado: de forma implicita ao tratar-se o "encolhimento urbano" (urban shrinkage)-, ou entao atraves da sua negacao na regeneracao urbana.

O fato do encolhimento urbano--a perda de populacao e destruicao de emprego, mais visivel no Norte Global--se ter tornado num topico de atualidade nao significa que o arruinamento do espaco edificado, que lhe e inerente, tenha merecido grande atencao. Os estudos focaram-se nos aspetos demograficos e economicos do encolhimento urbano, em averiguar as suas causas, e em discutir as solucoes de politica mais eficazes para responder a esse "problema" (Pallagst, Schwarz, Popper, & Hollander, 2009; Bontje & Musterd, 2012; Groflmann, Beauregard, Dewar & Haase, 2012; Hospers, 2014), sem olharem devidamente a dimensao corporea e palpavel que tudo isso tem na destruicao do edificado. Tambem a abundante 1 bibliografia sobre o tema da regeneracao urbana obliterou praticamente a reflexao sobre as dinamicas de arruinamento e respetivas logicas, reduzindo este assunto a um simples ponto de partida para a discussao--essa sim considerada pertinente --da sua reversao (Couch, Sykes, & Borstinghaus, 2011; Segado-Vazquez & Espinosa-Munoz, 2015; Talion, 2010).

A primeira intencao do presente estudo e contrariar esta desatencao, trazendo para o centro do debate o arruinamento do espaco edificado e as suas racionalidades. Nao parece possivel entender plenamente as transformacoes da paisagem urbana sem atender a esta componente da sua mutacao. O segundo objetivo e refletir sobre a relacao entre abandono, arruinamento e regeneracao urbana. A tendencia dominante na literatura tem sido por em contraposicao, como se fossem movimentos antagonicos e mutuamente excludentes, abandono e arruinamento, de um lado, e regeneracao urbana, do outro; os primeiros sao tidos como uma especie de "anomalia" na evolucao das cidades, a ultima como uma medida terapeutica dirigida a sua solucao. A relacao, porem, parece ser mais complexa. Apesar dos esforcos canalizados para a regeneracao urbana nas ultimas decadas, designadamente na Uniao Europeia (UE), os resultados sao contraditorios. Se algumas cidades inverteram as tendencias recessivas e iniciaram processos de recuperacao, outras continuaram a perder habitantes e a assistir ao alastramento dos espacos de arruinamento (Kabisch & Haase, 2011; Rae, 2013; Turok & Mykhnenko, 2007). Acresce que as dinamicas de retoma foram, quase sempre, dispares e seletivas, com bairros que rejuvenesceram a par de outros que se afundaram em espirais de abandono e desinvestimento (Buzar et al., 2007; Couch & Cocks, 2013). Neste artigo, procurar-se-a demonstrar que estes aparentes paradoxos se devem ao facto de arruinamento e regeneracao nao serem processos contrarios e incompativeis, gerados por forcas opostas, mas sim duas faces articuladas do processo de producao do espaco urbano.

Tendo em conta esses objetivos, o artigo estrutura-se em duas partes. Comeca por discutir teoricamente a ruina urbana moderna e os processos ruinogenicos. Depois, numa segunda etapa, avanca para a relacao entre arruinamento e regeneracao urbana, examinando o caso de Lisboa. A analise baseia-se em informacao de base estatistica e documental, com destaque para os censos da habitacao, pelo que a parte empirica incide essencialmente no imobiliario residencial. Diga-se que a area metropolitana de Lisboa se afigura um caso de estudo especialmente util para os objetivos deste artigo por se tratar de um territorio onde processos de arruinamento e de regeneracao urbana tem coexistido lado a lado. Num ambiente geral de euforia imobiliaria que levou a uma expansao explosiva das periferias, houve ao mesmo tempo um encolhimento acentuado da cidade-centro. Lisboa foi a segunda cidade capital da ue que mais perdeu populacao nas duas ultimas decadas (Mateus, 2013, p. 250). Quem visita Lisboa vindo da Europa do Norte nao fica insensivel a degradacao do patrimonio edificado. Contudo, isso nao impediu que, em simultaneo, se dessem movimentos de reinvestimento no ambiente construido, conjugacao que contribuiu para a formacao de uma paisagem heteroclita onde o novo, o antigo reabilitado e o arruinado aparecem mesclados.

Em vista a uma teoria da ruina urbana moderna

O arruinamento urbano e indissociavel do abandono do espaco edificado das cidades. Os dois fenomenos andam relacionados. Umas vezes e o primeiro que se antecipa ao segundo: pode acontecer que o arruinamento se inicie com os edificios ainda ocupados, vindo o abandono a dar-se em consequencia do avanco da degradacao; outras vezes acontece o contrario: a deterioracao do edificado e espoletada e progride depressa apos um abandono. Ruinas e ocos urbanos ocorrem por isso normalmente a par, ainda que parte dos espacos ocos das cidades possam ser construcoes novas vazias que nao irao necessariamente evoluir para ruinas (imoveis ainda nao absorvidos pelo mercado, ou adquiridos para investimento).

As ruinas incluem varios tipos de situacoes resultantes de processos geneticos variados. A primeira grande distincao corresponde ao que DeSilvey e Edensor (2013, p. 466) chamaram de "ruinas rapidas" e de "ruinas lentas", i.e. ruinas resultantes de destruicoes subitas e cataclismicas (incendios, bombardeamentos, sismos, tempestades, etc.), e ruinas produzidas por interrupcoes de investimento na manutencao e reparacao dos edificios. Ao contrario das ruinas rapidas, que tem causas autonomas, as ultimas tem de ser interpretadas no quadro das dinamicas urbanas, das quais sao subprodutos. E ai que se devem fundar as bases de um modelo teorico-interpretativo do arruinamento urbano.

Uma revisao da teoria urbana a partir desta perspetiva permite identificar varias interpretacoes possiveis, sistematizaveis em tres teses fundamentais: (i) a...

Para continuar leyendo

Solicita tu prueba

VLEX utiliza cookies de inicio de sesión para aportarte una mejor experiencia de navegación. Si haces click en 'Aceptar' o continúas navegando por esta web consideramos que aceptas nuestra política de cookies. ACEPTAR