Considerações acerca da decisão do Supremo Tribunal Federal Brasileiro sobre a interrupção da gravidez em casos de anencefalia (ADPF 54) - Núm. 2-2008, Noviembre 2008 - Revista de Estudios Constitucionales - Libros y Revistas - VLEX 51184937

Considerações acerca da decisão do Supremo Tribunal Federal Brasileiro sobre a interrupção da gravidez em casos de anencefalia (ADPF 54)

AutorMônia Clarissa Hennig Leal
CargoUniversidade de Santa Cruz do Sul-Brasil moniah@@unisc.br
Páginas529-547

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1. Considerações iniciais

A tradição interpretativa ocidental tem se caracterizado por uma atuação de cunho marcadamente positivista, em que se verifica um exacerbado apego à lei, que, por sua vez, se evidencia por meio de uma hermenêutica extremamente restritiva, identificada por uma atividade silogística e simplista de contraste entre premissa maior (lei) e premissa menor (fato), onde o que importa é a validade do silogismo lógico, não havendo possibilidade de questionamento ou espaço interpretativo para uma reflexão acerca da verdade das próprias premissas.1

Nesta perspectiva, a escola tradicional de interpretação se afigura como frágil em face das especificidades fáticas que envolvem e permeiam o direito e os conflitos sociais, demandando respostas efetivas que estas formas simplistas de interpretação muitas vezes não são capazes de dar ou, então, não são capazes de enfrentar satisfatoriamente, pois desconsideram a riqueza dos aspectos envolvidos no conflito que pretendem resolver. Page 530

Assim, os problemas jurídicos são, antes de mais nada, também problemas fáticos, permeados por uma pluralidade de aspectos pragmáticos e por uma multiplicidade de variáveis que interferem (e devem interferir) na interpretação e que precisam, necessariamente, ser levados em consideração e explorados em suas potencialidades por ocasião de sua decisão jurídica.

Dentro deste contexto, ao se enfrentar um caso concreto, tem-se que ele deve, antes de mais nada, ser explorado em seus vários sentidos e significados, a fim de que sejam contemplados os seus aspectos de conexão com a vida social na qual se insere e da qual ele não pode ser desconectado, pois a historicidade e o caráter finalístico da norma se afiguram como essenciais e desempenham papel fundamental na compreensão do fato e do próprio direito.

É neste ponto, mais uma vez, que a teoria civilista tradicional, com seu método notadamente dedutivo, deixa a desejar, pois sua atuação é marcada por uma característica de fragmentação e de compartimentalização dos fatos e dos fenômenos, típica do sistema analítico de inspiração cartesiana, onde o todo não existe enquanto todo, mas apenas enquanto somatório de partes isoladas, cuja análise não leva em consideração a interação com as demais.

É com base em uma tal perspectiva que se pretende propor uma metodologia de estudo de caso mais adequada à complexidade das relações sociais e que leve em consideração as variáveis endógenas e exógenas das demandas.

Para tanto, a seguir propõe-se a análise de um caso específico referente à área do direito constitucional, apreciado e julgado pelo Supremo Tribunal em sede de liminar em Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, na assim chamada ADPF

Ao se analisar o caso, percebe-se que muitas questões envolvem a discussão, tais como a de se a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental constitui o instrumento jurídico adequado para a demanda, se o feto anencefálico pode ser considerado como portador de vida humana e, portanto, se a interrupção da gravidez implicaria em prática de aborto ou não, bem como se a autorização de um eventual aborto, neste caso, implicaria em inclusão de uma nova excludente de ilicitude no Código Penal, que apenas o autoriza em duas situações específicas (risco de vida da mãe ou gravidez proveniente de estupro), a conseqüente possibilidade/necessidade de realização dessas cirurgias pelo sistema público de saúde, dentre outras.

A seguir, com base no julgamento em questão, passar-se-á a uma abordagem dos diferentes momentos que constituem a proposta metodológica aqui desenvolvida, no sentido de se aplicarem os fundamentos teóricos, trabalhados nos capítulos precedentes, a uma experiência concreta, recentemente vivenciada na realidade brasileira. Page 531

2. Do julgamento da ADPF 54

O caso concreto aqui selecionado como objeto de análise, conforme já referido, diz respeito à Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54), que a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) impetrou perante o Supremo Tribunal Federal em junho de 2004, pleiteando que se desse interpretação conforme à Constituição aos dispositivos do Código Penal que versam sobre o aborto, visando ao reconhecimento do direito subjetivo da mãe de realizar a interrupção da gravidez e à autorização de realização do parto antecipado, sem o risco de responsabilização criminal médica pelo ato praticado, havendo sido solicitada a concessão de liminar2 neste sentido, tendo-se em vista a urgência da medida e o risco de irreversibilidade da decisão.

A anencefalia é um defeito de formação do sistema nervoso fetal que ocorre entre o vigésimo terceiro e o vigésimo sexto dia de gestação, sendo que os bebês portadores desse tipo de problema nascem sem a maior porção do cérebro, enquanto que o tecido cerebral restante geralmente fica exposto, sem a proteção do crânio ou da pele. Por esta razão, a criança geralmente nasce cega, surda e sem consciência e não consegue sobreviver mais do que algumas horas.3 Segundo estimativas, a incidência do problema se dá em 4,6 casos a cada dez mil nascimentos; nos Estados Unidos, as estatísticas apontam que até dois mil bebês nascem com anencefalia a cada ano.4

Segundo alegação da entidade proponente da ação, a permanência do feto anômalo no útero da mãe é potencialmente perigosa, podendo gerar danos à saúde da gestante e até mesmo perigo de vida, em razão do alto índice de óbitos intra-uterinos desses fetos, constituindo a antecipação do parto, nesses casos, uma indicação terapêutica médica.

Reforçando os argumentos trazidos na inicial, sustentou-se a inviabilidade da vida extra-uterina desses fetos, em face do que a antecipação do parto não conformaria aborto, diferenciando-se a situação, ainda, do assim chamado aborto "eugênico", que tem por fundamento a percepção de alguma eventual anomalia ou doença da criança.

Assim, a CNTS requereu que fosse dada interpretação conforme à Constituição aos arts. 124, 126 e 128 do Código Penal, para explicitar que a disciplina legal do aborto não se aplica aos casos de antecipação terapêutica do parto em casos de anencefalia.

Além disso, uma vez constatada a total inviabilidade da vida extra-uterina, o posicionamento aduzido foi o de que, neste caso, a preocupação deveria ser transferida Page 532 para a gestante, submetida a tortura psicológica por ser obrigada a carregar um feto que se sabe ser incapaz de viver (ofensa à dignidade humana). Foi invocada, também, ofensa ao princípio da legalidade, segundo o qual "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (art. 5º , inciso II da Constituição de1988), sustentando-se que a antecipação terapêutica do parto não é vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro, bem como ao direito à saúde, já que a antecipação do parto constitui a única forma de se abreviar a dor da gestante.

Já do ponto de vista formal, a propositura da ação se justifica em razão do fato de que, apesar de os Tribunais brasileiros, por reiteradas vezes e em todo o país, terem autorizado a realização de partos nessas condições, algumas decisões em contrário também vinham sendo verificadas, gerando, assim, insegurança e incerteza quanto à sua prática.5 Em face disso, um dos principais pontos em questão consistiu na uniformização da jurisprudência, já que, no caso, a posição do STF teria efeito vinculante, erga omnes, aplicando-se, indistintamente, a todas as situações dessa natureza, que passariam a independer de uma autorização judicial específica e individual para cada caso, como vinha ocorrendo.

Em seu parecer, por outro lado, a Procuradoria-Geral da República refutou os argumentos aduzidos na inicial, fundando-se, basicamente, na questão da inadequação da figura da interpretação conforme à Constituição ao caso em tela e na primazia do direito à vida.

Segundo a PGR, os artigos do Código Penal questionados não se prestam à interpretação conforme à Constituição, pois bastam-se no que enunciam, havendo, ainda, necessariamente, limites ao uso do instituto em questão, sob pena de se usurparem funções propriamente legislativas; conforme sustentado, o sentido literal da lei não constitui, por si só, limite à interpretação, mas ela não pode se converter em um instrumento de revisão do direito posto, sendo vedado, pois, aos juízes, por essa via, fazer uma nova lei com conteúdo diferente da anterior, sob pena de violar-se o princípio da separação dos poderes.

Ademais, o parquet federal fez alusão ao fato de que a anencefalia não se enquadra nas excludentes de ilicitude previstas no Código Penal, pois não há, neste caso, risco de vida por parte da mãe. Por fim, referiu que, se há gestação, há vida intra-uterina, sendo esta protegida, no direito brasileiro, desde a concepção (art. 2º do Código Civil brasileiro) e conformando-se o direito à vida, no caso, como marco primeiro dos direitos fundamentais, não podendo ele ser medido pelo tempo, isto é, o eventual sofrimento da gestante não conforma um elemento de peso suficiente para se contrapor a isso (em caso de um juízo de ponderação de bens). Page 533

Por fim, invocando o princípio da solidariedade insculpido no art. 3º , inciso I, da Constituição brasileira, o Procurador-Geral da República, Claudio Fontelles, afirmou que a antecipação do parto impede a doação de órgãos, privando-se, dessa forma, outras crianças de poderem viver normalmente.

No caso, o Ministro Marco Aurélio Mello, relator do...

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