Passando a limpo: um passeio pelos processos e pelos projetos de revitalizacao urbana do Meatpacking District, em Nova York, e da Regiao da Luz, em Sao Paulo. - Vol. 38 Núm. 115, Septiembre 2012 - EURE-Revista Latinoamericana de Estudios Urbanos Regionales - Libros y Revistas - VLEX 411861358

Passando a limpo: um passeio pelos processos e pelos projetos de revitalizacao urbana do Meatpacking District, em Nova York, e da Regiao da Luz, em Sao Paulo.

AutorMaquiaveli, Janaina
CargoArt

RESUMO | O texto que segue d parte de um estudo comparativo entre os processos de revitalizaçáo urbana do Meatpacking District, em Nova York, e os projetos de revitalizaçáo da Região da Luz, em São Paulo. O artigo tem por objetivos transitar pelos principais paradigmas da sociologia urbana, destacar as formas de sociabilidade típicas dos grandes centros c refletir a respeito de como a sociologia contemporânea vem sendo exigida de uma revisão acerca do que sáo as cidades. Tudo isto tendo em vista os processos de revitalização urbana e gentrification, cada vez mais frequentes em diferentes cidades ao redor do mundo.

PALAVRAS-CHAVE | Urbanismo, urbanizaçáo, vulnerabilidade.

ABSTRACT | The text below is part or a comparative study between the urban revitalization process of the "Meatpacking District" in New York City, and the urban revitalization projects of Regiáo da Luz, in Sao Paulo, Brazil. The article's objectives are to undertake a critical overview of the main urban sociology theories and to reflect about the ways in which comtemporary sociology is being in need or a revision of its definitions about what cities are. This analysis considers the processes of urban revitalization and gentrification, that are becoming more frequent in cities all over the world.

KEY WORDS | Urbanism, urbanization, vulnerability.

Introduçáo

As cidades, como os sonhos, sao construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa. (...) As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem um nem outro bastam para sustentar as suas muralhas. De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas. Ou às perguntas que nos colocamos para nos obrigar a responder, como Tebas na boca da Esfinge.

--Italo Calvino, Cidades invisíveis

As cidades como narrativas fazem parte da história do pensamento sociológico, assim como, de modo recorrente, do universo literário, tal como se pode encontrálas no livro de Calvino. O olhar do escritor, do viajante, do pesquisador sempre busca ultrapassar os limites da geografia ao descrever as cidades que observa, ou até mesmo as cidades que se escondem numa outra, a cidade oficial, a dos mapas e dos cartões postais, a das passagens e das paisagens, tal como descrevera Benjamim (1985, 2006) em Paris, capital do século XIX.

No entanto, ao andar pelas ruas de uma grande cidade, hoje em dia, nem sempre é possível encontrar o que, na sociologia, definiu a vida urbana e moderna, tal como retratada, de modo paradigmático, pelo olhar benjamimniano que transitara por entre as ruas de Paris. Talvez por isso seja necessário perguntar-nos o que restou dos paradigmas que fizeram das cidades importante objeto de estudo das ciências sociais, tendo em vista os cenários nos quais se transformou o espaço urbano, na contemporaneidade. Seria possível, por exemplo, falar em uma natureza peculiar das cidades, tal como fizera a pesquisadora e ativista Jane Jacobs na Nova York dos anos 1960? O que pode ter restado dos lugares, para além das demolições e das reconstruções ocasionadas por projetos urbanísticos grandiosos como os de Hausssmann, no século XIX, ou de Robert Moses, nos anos 1960, contra o qual militara Jacobs? E o que dizer das cidades, hoje em dia? Ao invés de demolidas, não estariam sendo simplesmente passadas a limpo por iniciativas cada vez mais recorrentes e reincidentes de revitalização urbana e gentrification? (1)

Neste artigo, apresentaremos alguns aspectos relacionados à urbanização de Nova York e São Paulo, de modo a introduzir os estudos comparativos sobre os processos e os projetos de revitalizaçáo do Meatpacking District, na primeira, e da Região da Luz, na segunda. Para tanto, transitaremos pelos principais paradigmas da sociologia urbana; destacaremos as formas de sociabilidade típicas dos grandes centros e refletiremos sobre como a sociologia contemporânea vem sendo exigida de uma revisão acerca do que são as cidades.

As cidades como objeto de estudo das ciências sociais

A sociologia clássica e a Escola de Chicago

No final do século XIX, as mudanças decorrentes dos processos de industrialização e modernização social transformaram as cidades em objeto de estudo de diferentes campos científicos. Nas ciências sociais, elas passaram a ser definidas como artefatos, uma espécie de materializaçáo do tipo de sociedade originária da Revolução Industrial, cujos processos de urbanização promoveram a coexistência e o trânsito, harmoniosos ou não, de uma diversidade de classes, estratos e categorias sociais em um mesmo espaço geográfico, o espaço urbano metropolitano, entáo marcado por formas bastante características de sociabilidade (Simmel, 1972; Velho, 1987; Elias, 1994).

A partir dos anos 1920, a análise das relações entre espaço e sociedade foi significativamente ampliada pela Escola de Chicago, já que seus estudos conseguiram transpor os conceitos de diversidade e de interaçáo social, do modo como articulados por Simmel, para o campo da investigação empírica e experimental. O ponto central dos trabalhos de Robert Park (1987), um de seus fundadores, foi identificar na cidade características da sociabilidade urbana descrita pelos clássicos, tais como os modelos de solidariedade, ocupação e divisão do trabalho, ou mesmo os desvios de interações sociais típicas de um modo urbano de vida. Contudo, o mais importante legado de Park foi estruturar a ideia de que há uma correlação entre espaço físico e espaço social. Segundo ele, padrões de gosto, vocabulário, normas e valores socialmente compartilhados estão diretamente ligados à maneira como os indivíduos ocupam o espaço urbano e vice-versa (Becker, 1996).

Herdeiro de Simmel e Park, deve-se a Goffman (1975) e a seus estudos sobre representação social realizados em Chicago a compreensáo de que as interações, nas grandes cidades, são dotadas de certas singularidades, como a encenaçáo de papeis e a transitoriedade das práticas cotidianas resultantes do compartilhamento, às vezes provisório, de padrões e de regras de conduta vigentes em cada situação interacional.

Em termos teóricos, os conceitos de segregação, distância social e estigma formulados por Goffman (1975) nos aproximam da ideia de espaço social de Pierre Bourdieu (1999, p. 160), para quem "não há espaço, em uma sociedade hierarquizada, que não seja hierarquizado e que não exprima as hierarquias e as distâncias sociais". Isso explica, sobretudo no Brasil, onde mistura e diversidade sáo tão comumente utilizadas como elementos de definiçáo de nossa identidade cultural, por que a proximidade geográfica entre grupos tão diversos nem sempre se traduz em interações sociais efetivas, no espaço urbano.

A natureza peculiar das cidades

De acordo com Jane Jacobs (2000), a efetividade das interações sociais no espaço urbano pode ser tanto maior quanto mais diversificadas forem as cidades, nos diferentes usos e apropriações que se possa fazer delas.

Na prática, há quatro elementos que, segundo Jacobs, garantem a vitalidade e o dinamismo urbanos: i) a multiplicidade de funções, que permite às pessoas transitarem e se encontrarem em horários e por razões diferentes; li) a existência de quadras curtas, que ampliam as possibilidades de circulação pela região onde se vive ou trabalha, criando relações de afinidade com o espaço e a vizinhança; iii) a existência de construções com idades e estados de conservação variados, cuja ocupação tende ase dar de forma também diversificada; iv) a alta densidade populacional ocasionada pela mistura de residências, comércio e serviços, garantindo que as pessoas andem pelas ruas em diferentes horários do dia. De acordo com Jacobs, é a coexistência destes elementos que confere às cidades sua particularidade ou, mais propriamente, sua natureza.

No entanto, alguns fatores foram se tornando preponderantes na reconfiguração do espaço urbano a partir dos anos 1950, e não só em Nova York, onde vivia Jacobs, alterando significativamente a natureza peculiar das cidades; o predomínio de modelos progressistas de urbanização, por exemplo, foi um deles. Tanto nos Estados Unidos, em maiores e mais significativas proporções, quanto no Brasil, a diversidade foi sendo gradativamente comprometida pela implantação de modelos de urbanização compartimentados ou monotemáticos, bem como de processos de suburbanização rumo a condados periféricos, no caso americano, ou a bairros situados no entorno das áreas centrais, no caso brasileiro. (2) Com isso, a cidade como espaço dinâmico, diverso e vivaz foi se tornando decadente e deteriorada, e posteriormente substituí& pelo que Henri Lefebvre (1991) e Lawrence Herzog (2006) definiram como espaços simulados de convívio social --como centros fechados e privados de moradia, consumo e lazer--, tanto mais homogeneizados quanto maiores os investimentos internacionais neles empregados.

Ironicamente, no entanto, quando a decadência passou a comprometer seu desempenho econômico e sua capacidade de atração de investimentos, o retorno às cidades foi sendo paulatinamente retomado por diferentes grupos de interesse. O resultado foi uma série de iniciativas de revitalização urbana que, passando as cidades a limpo, foram marcadas pela oportunidade de retorno financeiro e de visibilidade política, nos anos 1970 e 1980, ou estruturadas como ferramenta estratégica na disputa por investimentos e turismo entre as chamadas cidades globais (Sassen, 2001), a partir dos anos 1990. Todo este cenário acabou estabelecendo uma nova ordem urbana, não se sabe ao certo se mais bonita, mas certamente muito mais intensa do que no cartão postal.

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