A paradoxal face 'hipermoderna' do processo constitucional: Um olhar sobre o direito processual brasileiro - Núm. 2-2010, Noviembre 2010 - Revista de Estudios Constitucionales - Libros y Revistas - VLEX 300418714

A paradoxal face 'hipermoderna' do processo constitucional: Um olhar sobre o direito processual brasileiro

AutorJânia Maria Lopes Saldanha
CargoDoutora em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - São Leopoldo, RS, Brasil. Professora dos Cursos de Mestrado, Doutorado e Graduação em Direito da mesma Universidade
Páginas675-706

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Estudios Constitucionales, Año 8, Nº 2, 2010, pp. 675 - 706. ISSN 0718-0195
Centro de Estudios Constitucionales de Chile Universidad de Talca

“A paradoxal face ‘hipermoderna’ do processo constitucional:
Um olhar sobre o direito processual brasileiro” Jânia Maria Lopes Saldanha

A pArAdoxAL fACE “hIpErModErNA” do proCESSo CoNSTITUCIoNAL: UM oLhAr SobrE o dIrEITo proCESSUAL brASILEIro

Jânia Maria Lopes saLdanha1

“Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além”. paulo Leminski

R esumo : Análise da relação entre pós-modernidade, neoliberalismo e hipermodernidade e a consequência sobre as reformas processuais brasileiras que estabelecem a celeridade e a quantificação como os metavalores da jurisdição.

A bstRAct : Analysis of the relationship between post-modernity, neoliberalism and hypermodernity and the consequence on the Brazilian processual reforms that establish the celerity and the quantification as the meta-values of the jurisdiction.

P AlAvRAs -c hAve : J urisdição. Processo. Neoliberalismo. Hipermodernidade. Quantificação. K ey woRds : Jurisdiction. Process. Neoliberalism. Hypermodernity. Quantification.

Sumário: Introdução; parte 1 A relação circular entre pós-modernidade, neoliberalismo e hipermodernidade: A propósito de uma Jurisdição modelada; parte 2 Crônica de uma morte anunciada: As reformas que prestigiam a quanti-dade e desprezam a qualidade em um processo neoliberal; Considerações finais; referências.

introdução

No momento em que este artigo é escrito, encontra-se em curso no brasil o projeto de criação de um novo Código de processo Civil. parte dos homens ainda

1doutora em direito da Universidade do Vale do rio dos Sinos - São Leopoldo, rS, brasil. professora dos Cursos de Mestrado, doutorado e Graduação em direito da mesma Universidade. professora do Curso de direito da Universidade federal de Santa Maria - Santa Maria, rS, brasil. Este trabalho é produção parcial do projeto desenvolvido sob os auspícios do CNpq, coordenado pela autora e intitulado “Entre o neoliberalismo e a democratização: os relatórios do banco Mundial e os (im)pactos para a reforma do poder Judiciário brasileiro confrontados ao imperativo da desfuncionalidade estrutural” desenvolvido em rede por meio da atuação de pesquisadores de várias universidades, dentre elas a UNISINoS e a UfSM. E-mail: janiasaldanha@gmail.com

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deposita valor no direito e na sua codificação para reger a vida em sociedade e para assim minimamente “socializar” a insociável sociabilidade humana de que já falara Kant. Entretanto, não se trata mais de pensar o direito apenas como expressão da vontade soberana dos Estados Nacionais. o mundo mudou.

Marcado por inumeráveis avatares, especialmente pelas duas grandes guerras, o cenário internacional a partir da segunda metade do Século xx foi paulatinamente ganhando cores múltiplas como expressão de abertura ao diálogo e no âmbito dos Estados a vinculação entre Constituições que assegurassem direitos fundamentais e democracia foi inexorável. dentre eles o acesso à Justiça que aqui deve ser compreendido como todo aquele que garante o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório e a fundamentação das decisões. Assim, a vigilância permanente e efetiva desse princípio transcende às jurisdições dos Estados e ganha fóruns internacionais a exigir uma mudança paradigmática do jurista para reconhecer no processo um direito constitucional fundamental que deve estar alinhado ao direito internacional. A relatividade histórica dos conceitos, como já lembrara Calamandrei, implica na necessária refundação da concepção de processo e jurisdição, dois pilares importantes do direito processual.

Entretanto, a maioria dos códigos de direito processual de países de tradição civil como a do brasil foi elaborada sobre as bases do direito romano canônico e num tempo de menor complexidade das relações jurídicas, da troca de comunicação e de informação. Assim, a tão falada crise do processo e da jurisdição não nasceu no vazio, mas sim em um contexto histórico em que novos direitos foram surgindo em decorrência de fatores culturais, econômicos, políticos e sociais que, somados, produziram novas categorias de demandas para as quais as estruturas processuais não podiam dar resposta satisfatória.

A emergência e o descumprimento dos direitos humanos de segunda, terceira e quarta gerações que surgiram no contexto do Estado Social e do Estado democrático de direito, forjaram paulatinamente uma reforma funcional dos sistemas processuais. Às novas categorias de direito material, agora para além das esferas privadas e individuais das pessoas, era necessário corresponder, no plano das demandas em Justiça, processo com procedimento adequado à sua satisfação do ponto de vista da hermenêutica constitucional do acesso à Justiça. Mas há de perquirir-se se essas experiências de reforma funcional foram acompanhadas de uma reforma estrutural relativa ao “ser” do processo e da jurisdição, uma vez não poderem mais ser lidos senão com as lentes do neoconstitucionalismo.

Nesse diapasão, neste texto pretende-se realizar uma abordagem reflexiva sobre o direito processual civil e a jurisdição no que diz respeito à possibilidade de que, ambos, estejam tomando feições aqui denominadas de “pós-modernas”.

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a paradoxaL face “hiperModerna” do processo constitucionaL:

uM oLhar sobre o direito processuaL brasiLeiro

Como se sabe, o sentido que é atribuído a essa expressão é múltiplo. Tal multiplicidade existe na razão direta do olhar lançado sobre a contemporanei-dade por aquele que tenta definir a expressão, já que o faz do lugar que ocupa. Assim, qualquer pretensão à uniformidade é vã. Economistas, filósofos, juristas, politólogos e sociólogos, entre outros, o que têm em comum ao tratar do tema, é pensar a contemporaneidade não como algo dado, como uma totalidade, mas algo em construção, em cujo contexto, o cenário cultural, econômico, filosófico, jurídico, político e social, dá mostras de fortalecer elementos que são modernos, por um lado e, por outro, romper com os mesmos, a partir da criação de novas formas de civilidade.

A pretensão de esgotar o tema segura e mimeticamente repetiria o mito de Sísifo. Sendo assim, escolhe-se tratar da pós-modernidade –e ligar essa reflexão ao campo do direito processual– tomando-se como fonte de inspiração a obra de Jacques Chevallier. Mas nesse momento a partir de apenas um olhar, isto é, de uma pós-modernidade que se faz hipermoderna e então retroalimenta elementos que nasceram com a modernidade e sofreram processo de lapidação ao longo de quase quatro séculos.

Como refere Nicola picardi2, há uma vocação do tempo presente para a jurisdição, o que se expressa em âmbito mais global, uma vez serem os juízes os agentes mais ativos da chamada mundialização.3houve, como é sabido, uma inversão das tendências. de uma posição secundária a jurisdição passou a protagonista e o processo passou a ser o modo comum de resolução de setores inteiros como a família, os direitos sociais e a constitucionalidade das leis a demonstrar os desafios entre o ideal de querer viver em conjunto e as dificuldades da ação política.4A

judicialização da política internalizou essa complexidade e pode ser considerada resultado de dois fatores importantes: primeiro, da fragilidade dos sistemas políticos e, segundo, do quadro de declínio da reação dos governos às demandas da cidadania, como refere rosanvallon.5

2 picardi, Nicola. Jurisdição e processo. rio de Janeiro: forense, 2008, pp. 1-33.

3 Garapon, Antoine. aLard, Julie. Os juízes na mundialização. A nova revolução do direito. Lisboa: piaget,
p. 8. E isso ocorre, particularmente, em face do fenômeno da internacionalização do direito. Sobre essa problemática, vejam-se as lições de Mireille delmas-Marty ministradas no Seminário da Cátedra Estudos Jurídicos Comparativos e figuras da Internacionalização do direito junto ao Collège de france no ano de 2008, disponível em http://www.college-de-france.fr/default/EN/all/int_dro/index.htm. parte dessas lições esta traduzida e encontra-se postada junto ao Grupo de Estudos da obra de Mireille delmas-Marty junto ao ppG em direito da UNISINoS, coordenado pela ora autora. Trata-se do grupo grupo-de-estudos-delmasmarty@googlegroups.com.

[2] Garapon, Antoine. O guardador de promessas. Justiça e democracia. Lisboa: piaget, p. 48.

[3] rosanvaLLon, pierre. La contre-democracie. La politique à l’age de la défiance. paris: Seuil, 2006, pp. 232-233. 677 Estudios Constitucionales, Año 8, Nº 2 2010, pp. 675 - 706

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Entretanto, o fenômeno mais significativo produzido pela exacerbação do número de demandas é o descompasso entre o direito processual e a) a natureza das demandas; b) a internacionalização das relações jurídicas e do direito e; c) a cultura da urgência, cujo traço marcante é a dinâmica permanente de mudança e que demarca a dominação sobre extensas esferas da vida social, tudo somado a reivindicar, no plano internacional, harmonização de regras processuais em reforço às bases da cooperação jurisdicional e, no plano interno dos Estados, a necessidade de reformas processuais.
por outro lado, a importância jurídico-político-social em analisar-se o processo e a jurisdição sob essa ótica, centra-se na própria crise do Estado. A queda na confiança da atuação da jurisdição, como se percebe em pesquisas realizadas,6

não deixa de ser expressão de uma crise maior que acomete o Estado num cenário rico de multiplicidades e que remete a uma crise mais genérica das instituições e dos valores produzidos no curso da modernidade no ocidente.
desse modo, pode-se pensar estar em curso...

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