A relacao entre o conceito de ruas completas e a Politica Nacional de Mobilidade Urbana: aplicacao a um projeto viario em Natal-RN, Brasil. - Vol. 46 Núm. 139, Septiembre 2020 - EURE-Revista Latinoamericana de Estudios Urbanos Regionales - Libros y Revistas - VLEX 863495849

A relacao entre o conceito de ruas completas e a Politica Nacional de Mobilidade Urbana: aplicacao a um projeto viario em Natal-RN, Brasil.

AutorValenca, Gabriel

Introducao

A partir das decadas de 1960 e 1970, ganhou corpo a contestacao do design tradicional de vias urbanas, incidindo sobre a suposta eficiencia economica da fluidez do trafego automobilistico e a maior compreensao de escopo e escala das externalidades socioambientais negativas a ela associadas (Banister, 2008; Litman, 2017; Suzuki, Cervero, & Iuchi, 2013). Percebeu-se, entao, que a dotacao crescente de infraestruturas voltadas (quase que) exclusivamente para a mobilidade automobilistica se torna insustentavel a medio-longo prazo.

A partir dai, consolidou-se o entendimento tecnico-academico a respeito da importancia de descentralizar os modos de transporte, na direcao de um conceito de "humanizacao da via" (McCann, 2013), tributario de contribuicoes que se originavam de praticas de traffic calming e esquemas de woonerven que passaram a ser sistematizadas na literatura tecnico-cientifica por autores como Hass-Klau (1990, 1992), por exemplo. Nesse ambito, as ruas passariam a ter um papel nao so de locomocao, mas tambem social, de vivencia e ate economica, o que supunha--no campo tecnico das infraestruturas de transporte urbano--intervencoes ancoradas principalmente na moderacao de volumes e velocidades de trafego.

Os desdobramentos teorico-conceituais e projetuais de tal abordagem deram origem a ideias-forca, como as de "pedestrianizacao dos centros urbanos", "cidades para pessoas" ou "bairros vivenciaveis". Especificamente, na America do Norte da decada inicial do seculo xxi, aquele legado intelectual e de realizacoes concretas de quase 40 anos foi apropriado na formulacao progressiva do conceito de complete streets (Smart Growth America, n.d.a), expressao traduzida no Brasil para "ruas completas". Definia-se ali ruas completas como ruas dirigidas a todos os usuarios e que, portanto, acarretam mais mobilidade e seguranca para pedestres, ciclistas, usuarios de transporte coletivo e automobilistas de todas as idades, limitacoes e habilidades (Toronto Centre for Active Transportation, 2012). A partir de entao, diversas cidades estadunidenses e canadenses tem usado este conceito para reprojetar e revitalizar ruas e espacos publicos: a National Complete Streets Coalition registra que, entre 2004 e o presente, 1.140 agencias publicas nos EUA, em niveis estadual, regional ou local, adotaram politicas baseadas no conceito de ruas completas, totalizando cerca de 1.200 intervencoes (Smart Growth America, n.d.b). As ruas completas estao sendo implementadas em cidades norteamericanas, como Nova Iorque, Chicago, Boston, Vancouver e Toronto (Smart Growth America, n.d.c).

Em 2015, a Organizacao das Nacoes Unidas (ONU) reuniu os estados-membros e principais grupos da sociedade civil dos paises para estabelecer metas com o objetivo de acabar com a pobreza, enfrentar as mudancas climaticas e buscar o desenvolvimento sustentavel. Esta iniciativa foi conhecida como a Agenda 2030. Para isso, foram estabelecidos 17 objetivos de desenvolvimento sustentavel (ODS) voltados principalmente para paises em desenvolvimento--erradicacao da pobreza; fome zero e agricultura sustentavel; saude e bem-estar; educacao de qualidade; igualdade de genero; agua potavel e saneamento; energia limpa e acessivel; trabalho decente e crescimento economico; industria, inovacao e infraestrutura; reducao das desigualdades; cidades e comunidades sustentaveis; consumo e producao responsaveis; acao contra a mudanca global do clima; vida na agua; vida terrestre; paz, justica e instituicoes eficazes e parcerias e meios de implementacao (ONU, 2015). Ainda que, inicialmente, nao tenham sido explicitados ods relacionado ao transporte sustentavel, este esta relacionado a varios ods, contribuindo para o desenvolvimento das cidades inclusivas, seguras, inovadoras e sustentaveis (Portugal, 2017). Um ano apos a divulgacao da Agenda 2030, a ONU desenvolveu um documento explicando a importancia do transporte sustentavel para atingir as metas estabelecidas inicialmente (ONU, 2016). Estabeleceu-se a politica de transporte como fundamental para alcancar as seguintes ods: saude e bem-estar; fome zero e agricultura sustentavel; energia limpa e acessivel; consumo e producao; industria, inovacao e infraestrutura; acao contra a mudanca global do clima e cidades e comunidades sustentaveis. Segundo a ONU (2016), o desenvolvimento so e atingido por meio de politicas voltadas ao desenvolvimento sustentavel. Tendo isto em vista, investimentos em transporte sustentavel so obtem um desenvolvimento sustentavel, se for priorizada a seguranca das viagens e dos modos. As ruas completas buscam a mobilidade, integracao e interacao dos diversos modos de transporte de forma segura, indo ao encontro com as proposicoes da ONU (2016).

Entretanto, no Brasil e, em especial, em Natal, a quase totalidade dos processos de projetacao e reprojetacao viaria ainda lanca mao do conceito tradicional de planejamento para a fluidez automobilistica em meio urbano. O carro, por sua vez, e um dos maiores sonhos de consumo da populacao. A "cultura do carro" ja esta inserida na sociedade brasileira. Isto porque, alem do conforto e impressao de seguranca provido pelo automovel, a precariedade dos diversos sistemas de transporte publico no pais (tempo de espera acima do planejado, superlotacao, demora no tempo de percurso e atrasos nos horarios de partida e chegada dos veiculos publicos) resultam em uma baixa confiabilidade do usuario no sistema. Alem disso, o carro fornece um servico "porta a porta", o qual apenas em poucas ocasioes, e oferecido pelo transporte publico coletivo. Ou seja, o automovel promove a locomocao da origem direto para o destino requerido. Assim, por estes motivos, houve o agravamento do congestionamento nas ultimas decadas. A precariedade dos servicos de transporte coletivo torna cada vez maior a exclusao social pelo transporte e agrava a saude publica. De acordo com De Nazelle et al. (2011), a emissao de gases poluentes, o elevado numero de acidentes por automoveis e a falta de atividade fisica causada pelo planejamento tradicional resulta em impactos na saude publica. Assim, politicas voltadas ao transporte sustentavel tendem a minimizar estes impactos devido ao aumento de atividade fisica e possiveis reducoes de poluicao do ar e sonora. Entretanto, e importante mencionar que a falta de politicas eficazes em prol do transporte sustentavel pode expor o pedestre e o ciclista a inalarem mais poluentes e a terem maiores conflitos no trafego (De Nazalle et al., 2011). Diante deste quadro, prolifera a acao de coletivos sociais em prol de maiores niveis de caminhabilidade e ciclabilidade. Este contexto deu origem a um movimento que culminou na sancao da Lei Federal 12.587/2012, conhecida como a Politica Nacional de Mobilidade Urbana (Ministerio das Cidades, 2013).

A Lei brasileira objetiva planejar o crescimento das cidades de forma organizada, priorizando os investimentos em sistemas de transporte publico e em modos nao-motorizados e politicas de restricao ao uso do automovel. E de interesse avaliar que a Politica brasileira foi estabelecida previamente a Agenda 2030, tendo como base iniciativas europeias neste ramo. Em 2008, o Brasil, por meio do Projeto Apoio aos Dialogos Setoriais Uniao Europeia-Brasil, consolidou pactos sociais com a politica europeia que, desde 2004, recomendou aos paises da Uniao Europeia a elaborarem planos de transporte urbano sustentavel, considerando o uso do solo integrado (European Comission, 2004; Machado & Piccinini, 2018). Em 2011, estabeleceu que os paises deveriam elaborar planos de mobilidade urbana sustentaveis, substituindo os planos de transporte sustentaveis, tendo um enfoque maior nos aspectos sociais, em resultados a medio-longo prazo, abrangendo todas as dimensoes da sustentabilidade e obtendo solucoes eficazes para os problemas relativos ao transporte (European Comission, 2011; Machado & Piccinini, 2018; May, 2015). Assim, a Politica Nacional de Mobilidade Urbana surgiu a partir da troca de experiencia, aprendizado e exemplo das politicas nos paises europeus voltados a planos de mobilidade urbana sustentavel.

A Lei propos que os municipios com mais de 20 mil habitantes elaborassem um Plano de Mobilidade Urbana em um prazo de tres anos, ora ampliado para abril de 2019. A informacao oficial e de que, ate julho de 2019, menos de 10% dos municipios enquadrados na exigencia legal elaboraram seus planos de mobilidade (Cidades.gov.br, 2019). Nao ha duvidas de que a Politica Nacional de Mobilidade Urbana e uma grande oportunidade para a mudanca do paradigma das politicas de transporte nas cidades brasileiras. Entretanto, a pequena quantidade de estudos tanto academicos quanto institucionais (cabe mencionar o esforco apresentado em Ministerio das Cidades (2015)), a falta de recursos tecnicos e financeiros, a falta de vontade politica e da consciencia da importancia da Lei pelos gestores publicos, entre outros fatores, redundam na baixa qualidade e quantidade de planos de mobilidade elaborados ate este momento (Santos & Valenca, 2016), em que a internalizacao dos principios de humanizacao das ruas no planejamento municipal chama a atencao por sua ausencia.

Nesse sentido, este trabalho objetiva proceder a comparacao dos elementos da Politica Nacional de Mobilidade Urbana com os principios projetuais das ruas completas, demonstrando a viabilidade de utilizar este conceito para guiar a elaboracao de planos de mobilidade urbana no Brasil no que concerne o planejamento e o projeto de...

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